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‘Eu havia completado vinte e oito anos de idade e guardava o leito, acometido de complicada inflamação nos rins, enquanto o médico da família esgotava todos os recursos para diminuir a cota de uréia que me envenenava o corpo, causando-me terrível opressão que parecia esmagar-me o peito. Em face da minha angústia, que aumentava de momento a momento, procurei explicar ao médico o que sentia, ansioso de um alívio, mesmo que fosse por breves instantes. Mas estranhava, ao mesmo tempo, que à medida que baixava a minha temperatura, aguçavam-se-me os sentidos; algumas vezes tinha a impressão de que era o centro consciente, absoluto, de toda a agitação que se fazia em torno do meu leito, porque captava o mais sutil murmúrio dos presentes. De modo algum poderia compreender a natureza de estranho fenômeno que me dominava, pois à medida que recrudescia a minha faculdade de ouvir e sentir, também em minha alma se fazia misterioso barulho, como se esquisita voz sem som me gritasse num tom desesperado.Era terrível associação psicológica; algo desconhecido, que se impunha e me bradava sinal de perigo, rogando-me urgente coordenação e rápido ajuste mental. Das fibras mais íntimas de minha alma partia violento apelo, que me exigia imediata atenção, a fim de que eu providenciasse os meios necessários para eliminar um iminente perigo invisível. Subitamente, a voz do médico se fez ouvir, com inusitada veemência:- Depressa ! O óleo canforado !
Então, invisível torpor já não me deixava agir e do imo de minha alma começava a crescer o impacto invasor, que principiava a agir sobre a minha consciência em vigília; depois, num implacável crescendo, percebia que no meu ser eclodia um angustiado esforço de sobrevivência, que se produzia pelo instinto de conservação. Tentei reunir as derradeiras forças que se me esvaíam, a fim de rogar o socorro precioso do médico e avisá-lo de que carecia de sua imediata intervenção. Entretanto, sob forte emoção e instintivamente atemorizado, eis que ouvi-o dizer desalentado:- Nada mais se pode fazer ! Conformem-se, porque o senhor Atanagildo já deixou de existir !Meu corpo já devia estar paralisado, mas pelo choque vivíssimo que recebeu a mente, compreendi perfeitamente aquele aviso misterioso que antes se evolara do âmago de minha alma; fora o desesperado esforço que o instinto animal despendera para que eu ainda comandasse o psiquismo sustentador das células cansadas. A comunicação do médico gelou-me definitivamente as entranhas, se é que ainda existia nelas algum calor animal. Embora eu sempre tivesse sido devotado estudioso do Espiritismo filosófico e científico, do mundo terreno, é inútil tentar descrever-vos o terrível sentimento de abandono e a aflição que me tomaram a alma, naquele momento. Eu não temia a morte, mas partia da Terra exatamente no momento em que mais desejava viver, porque principiava a realizar projetos amadurecidos desde a infância e, além disso, estava próximo de constituir o meu lar, que também fazia parte do meu programa de atividades futuras.
Quis abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam-me como chumbo; envidei hercúleos esforços para efetuar qualquer movimento, por mais débil que fosse, na esperança de que os presentes descobrissem que eu ainda não ‘morrera’, o que de modo algum podia acreditar, tal era a minha agudeza interior. Então, repercutiu-se violentamente esse esforço pela rede ‘psico-mental’ e ainda mais se avivaram os sentidos já aguçados da alma, os quais transmitiam-me as notícias do mundo físico, através de exótico sistema telefônico que eu sempre ignorara possuir. Sentia-me colado à pele ou às carnes cada vez mais frígidas, como se estivesse despido e apoiado sobre geladas paredes de cimento em manhã hibernal. Apesar deste estranho frio, que eu supunha residir exclusivamente no sistema nervoso, podia ouvir todas as vozes dos ‘vivos’, ou os seus soluços, clamores e descontroles emocionais junto ao meu corpo.Através desse delicadíssimo sentido oculto e predominante noutro plano vibratório, pressenti quando minha mãe se debruçou sobre mim e ouvi-a pronunciar:- Atanagildo, meu filho ! Não podes morrer, tu és tão moço !...
Senti a dor imensa e atroz que lhe ia pela alma, mas eu me encontrava algemado à matéria hirta, não podendo transmitir-lhe o mais débil sinal e aliviá-la com a sedativa comunicação de que ainda me encontrava vivo. Em seguida, achegaram-se vizinhos, amigos e talvez algum curioso, pois eu os pressentia sempre e captava-lhes o diálogo, embora tudo me ocorresse sob estranhas condições psíquicas, porquanto não assinalava nenhuma vibração por intermédio dos sentidos comuns do corpo físico. Sentia-me, por vezes, suspenso entre as duas margens limítrofes de dois mundos misteriosamente conhecidos, mas terrivelmente ausentes ! Às vezes, como se o olfato se me aguçasse novamente pressentia o cheiro acre de álcool que servia para a seringa hipodérmica, assim como algo parecido ao forte odor do óleo canforado. Mas tudo isso se realizava no silêncio grave de minha alma, porquanto não identificava os quadros exteriores, assim como não conseguia avaliar com exatidão o que devia estar me acontecendo; permanecia oscilando, continuamente, entre as sensações de um pesadelo mórbido. De vez em quando, por força da acuidade psíquica, o fenômeno se invertia; então eu me via centuplicado em todas as reflexões espirituais, no estranho paradoxo de me reconhecer muito mais vivo do que antes da enfermidade que me vitimara.
Durante a minha existência terrena, desde a idade de dezoito anos, eu desenvolvera bastante os meus poderes mentais, através de exercícios de natureza esotérica; por isso, mesmo naquela hora nevrálgica da desencarnação, conseguia manter-me em atitude positiva, sem me deixar escravizar completamente pelo fenômeno da morte física; eu podia examiná-lo atentamente, porque já era espírito dominado pela idéia da imortalidade. Postado entre dois mundos tão antagônicos, sentindo no limiar da vida e da morte, guardava uma vaga lembrança de que aquilo já me havia ocorrido, alhures, e que esse acontecimento não me parecia suceder-me pela primeira vez. O raciocínio espiritual fluía com nitidez e a íntima sensação de existir, independente de passado ou de futuro, chegava a vencer as impressões agudíssimas, que por vezes me situavam em indomável turbilhão de energias que se punham em conflito na intimidade de meu perispírito.Mas, de súbito, outro sentimento me apresentou angustioso e também me dominou com inesperado temor e violência; foi algo apocalíptico e que, apesar de minha experiência mental positiva e controle emotivo, me fez estremecer ante a sua proverbial realidade.
Reconhecia-me vivo, na plenitude de minhas faculdades psíquicas; em conseqüência, não estava morto, mas também nem vivo ou livre do corpo material. Sem qualquer dúvida, achava-me preso ao organismo carnal, pois que as sensações tão nítidas só podiam ser transmitidas através do meu sistema nervoso. Desde que o sistema nervoso ainda estivesse cumprindo a sua admirável função de me relacionar com o ambiente exterior, obviamente eu também estaria vivo no mundo físico, embora sem poder reagir, por ter sido vitimado por qualquer acontecimento grave.Não guardei mais ilusões; acreditei que fora vítima de violento choque cataléptico e, se não me acordassem em tempo, eu seria enterrado vivo. Já antevia o horror do túmulo gélido, os movimentos das ratazanas, a infiltração da umidade da terra no meu corpo e o odor repugnante dos cadáveres em decomposição. Colado àquele fardo inerte, que já não atendia aos apelos aflitivos do meu comando mental e ameaçava não despertar em tempo, previa a tétrica possibilidade de assistir ao meu próprio enterro.
Em seguida, nova e estranha impressão principiou a se apossar de minha alma; primeiramente se manifestava como um afrouxamento inesperado, daquela rigidez cadavérica; depois, um refluxo coordenado para dentro de mim mesmo, que se me deixou mais inquieto e assinalava algo de acusatório. Se não exagero, ao considerar o fenômeno que ocorria, tinha a impressão de estar sendo virado pelo avesso, pois a memória recuava paulatinamente através de minha última existência e enchia-me de assombro pela clareza com que passava a rever todos os passos de minha existência. Os acontecimentos se desenrolavam na tela mental do meu espírito à semelhança de vivíssima projeção cinematográfica. Tratava-se de incrível fenômeno, em que eram projetados todos os movimentos mais intensos de minha vida mental; os quadros se sobrepunham, em recúo, para depois esfumarem, como nos filmes, quando determinadas cenas são substituídas por outras mais nítidas. Eu decrescia em idade; remoçava, e os meus sonhos fluíam para trás, alçando as suas origens e os primeiros bulícios da mente inquieta.
Perdia-me naquele ondular de quadros contínuos e gozava de euforia espiritual quando entrevia atitudes e fatos dignos e podia comprovar que agira de ânimo heróico e inspirado por sentimentos benfeitores. Só então pude avaliar a grandeza do bem: espantava-me de que um simples sorriso de agradecimento, nessa evocação interior e pessoal, ou então a minúscula dádiva que havia feito em fraternal descuído, pudesse despertar em meu espírito essas alegrias tão infantis. Esquecera-me da situação funesta em que me encontrava para acompanhar com incontido júbilo os pequeninos sucessos projetados em meu cérebro etérico: identificava a moeda doada com ternura, a palavra dita com amor, a preocupação sincera para resolver o problema do próximo, ou então o esforço para suavizar a maledicência para com o irmão desajustado. Ainda pude rever, com extâse, alguns atos que praticara com sacrificial renúncia, porque não só perdera na competição do mundo material, como ainda humilhara-me a favor de adversário necessitado de compreensão espiritual.
Se naquele instante me fosse dado retomar o corpo físico e levá-lo novamente ao tráfego do mundo terreno, aquelas emoções e estímulos divinos teriam exercido tal influência benéfica em minha alma, que os meus atos futuros justificariam a minha canonização depois da morte física. Mas, em contraposição, não faltaram também os atos indelicados e as estultices do moço ardendo em desejos carnais; senti, subitamente, quando as cenas se me tornavam acusatórias; referindo-se às atitudes egocêntricas da juventude avara de seus bens materiais, quando ainda me dominava a volúpia de possuir o 'melhor' e superar o ambiente pela ridícula superioridade da figura humana. Também sofri pelo meu descuidismo espiritual da mocidade leviana; fui estigmatizado pelas cenas evocativas dos ambientes deletérios, quando o animal se espoja das sensações lúbricas. Não era uma acusação endereçada propriamente a uma natureza devassa, coisa que, felizmente, não ocorrera comigo, mesmo na fase de experiência sexual, mas que comprovava, naquele momento retrospectivo, que a alma realmente interessada nos valores angélicos deve sempre repudiar o ambiente lodoso da prostituição da carne. No quadro de minha mente superxcitada, eu identificara os momentos em que a fera do sexo, como força indomável, atraíra-me ao limiar do charco em que se debatem as infelizes irmãs deserdadas da ventura doméstica.
A projeção cinematográfica ainda continuava fluente em minha tela mental, quando reconheci a fase do aprendizado escolar e, depois, os folguedos da infância, cujos quadros, por serem de menor importância na responsabilidade da consciência espiritual, tiveram fugaz duração. Espantadíssimo, creio que devido à disciplina e aos êxitos dos meus estudos esotéricos, pude identificar um berço guarnecido de rendas, reconhecendo-me na figura de um rosado bebê, cujas mãos buliçosas e o corpo tenro eram objetos de júbilo e afagos de dois seres, que se debruçavam sobre mim - meus pais ! Mas o que me deixava intrigado e confuso é que, no seio dessa figura tão diminuta, de recém-nascido, sentia-me com a consciência algo desperta e dona de impressões vividas num passado remoto. Parecia-me envidar tremendos esforços para vencer aquele corpinho delicado e romper as algemas da carne, na tentativa de transmitir palavras inteligíveis e pensamentos adultos. Detrás da figura do bebê inquieto, com profundo espanto, eu reconhecia a 'outra' realidade de mim mesmo.
Atento ao fenômeno dessa evocação psíquica, tal como se vivesse o papel de principal ator em movimentado filme cinematográfico, chegava a estranhar o motivo daquelas imagens retroativas terem se interrompido e findado naquele berço enfeitado, quando 'algo', em mim, teimava em dizer que eu me prolongava além, muito além daquela forma infantil.Percebi, repentinamente, que a vontade bastante desenvolvida na prática ocultista me exauria ante o esforço de prosseguir para trás, certo de que, sob o meu desenvolvimento mental, eu terminaria desprendendo-me do bebê rechonchudo, que traçava o limite de minha existência, para alcançar o que deveria 'existir' muito antes da consciência configurada pela personalidade de Atanagildo. Confiante nas minhas próprias energias mentais, à semelhança do piloto que deposita fé absoluta em sua aeronave, não temi os resultados posteriores, pois, ousadamente, sob poderoso esforço quase heróico, desejei ir mais além e transpor aquele berço enfeitado de rendas, que significava a barreira do meu saber, mas não o limite de meu existir.
Havia um mundo desconhecido mais além daquele diminuto corpo focalizado na minha retina espiritual, mundo que tentei devassar, embora manietado em terrível transe que supunha de ordem cataléptica.Sob poderosa concentração de minha vontade, coordenei todas as minhas forças mentais disponíveis, ativando-as num feixe altamente energético e, decididamente, como se movesse viogoroso aríete, arremeti para além do misterioso véu que deveria esconder o meu próprio prolongamento espiritual. Atirei-me, incondicionalmente, na estranha aventura de buscar a mim mesmo, conseguindo desatar os laços frágeis que ligavam minha memória etérica à figura daquele atraente bebê rosado. Então consegui comprovar o maravilhoso poder da vontade a serviço da alma resoluta; sob esse esforço tenaz, perseverante e quase prodigioso, rompeu-se a cortina que me separava do passado. Surpreso e confuso, senti-me envolvido por festivo badalar de sinos possantes e, ao mesmo tempo, ouvia o rumor de grande algazarra a determinada distância de onde devia me encontrar.
'...Enquanto as ondulações sonoras do bronze inundavam o ar, senti-me envolvido pela brisa agreste, impregnada de um perfume próprio do lírio ou de flores familiares às margens dos lagos ou dos rios, ao mesmo tempo que uma nesga de um céu azul-esbranquiçado, comuns nos dias hibernais, volteou exoticamente sobre mim. Ainda pude compreender que estava suspenso, no ar, pois fui agitado por vigoroso balanço, enquanto forcejava para romper as cordas que me imobilizavam, contra a vontade. Sob a pressão de calejada mão suarenta, que me comprimia os lábios, estava impedido de gritar, enquanto violenta dor fazia-me arder o peito e a garganta. Pairei um pouco, acima do solo e, subitamente, num impulso mais forte, fui atirado ao seio de água pantanosa, onde o perfurme dos lírios se confundia com o ainda o bimbalhar dos sinos de bronze e as vozes humanas num tom festivo; pouco a pouco, tudo se foi perdendo num eco longinquo, enquanto os meus pulmões se sufocavam com a água suja e frígida.Esse rápido entreato da cessação da minha consciência, no mergulho das águas geladas, fez-me perder o cordel das imagens que se reproduziam em minha memória perispiritual e, como que retornasse de profundo pesadelo, senti-me novamente na personalidade de Atanagildo, vivo mental e astralmente, mas preso a um corpo de carne inteiriçada.Mais tarde, quando já de posse da memória de minha última existencia, pude então identificar aquela cena, ocorrida na França, em meados do século XVIII, quando eu fora surpreendido, de tocaia, pelos meus rivais enciumados da minha afeição por determinada jovem, os quais, depois de ferirem-me na garganta e no peito, lançaram-me no rio Sena, atrás da Igreja de Notre Dame, justamente na manhã em que se realizavam importantes comemorações religiosas. Por isso, no meu transe psicométrico de retorno ao passado, ocorrido durante a minha última encarnação, eu sentia reviver a sensação da água frígida em que fora atirado, pois a cena se reavivou fortemente no meu perispirito, assim que se conjugaram as forças vitais, em efervescência, para evitar o meu desenlace...'
Iniciado por Marianna Convívio
Iniciado por rwer Livros Espíritas
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